domingo, 6 de março de 2016

FRAUDES LITERÁRIAS NA ANTIGUIDADE: GALENO, ATOS DE PILATOS, AS GRANDES QUESTÕES DE MARIA, PLATÃO, ETC.

Imagem da internet

Embora a circulação de livros na Antiguidade fosse bem menor do que atualmente, as fraudes literárias se faziam presentes. Segundo o professor Dr. Bart D. Ehrman, havia pelo menos 10 razões que motivavam essas fraudes: para gerar lucros; para se opor a um inimigo; para contestar determinado ponto de vista; para defender a ideia de que sua própria tradição tinha inspiração divina; por humildade; por amor a um personagem com autoridade; para ver se era possível enganar; para complementar a tradição; para contestar outras fraudes e para dar autoridade aos pontos de vista de alguém.
 
Essas fraudes são conhecidas graças às referências deixadas nos escritos de Heródoto, Cícero, Quintiliano, Marcial, Suetônio, Plutarco, Galeno, Filastrato, Diógenes Laércio. Entre os escritores cristãos da Antiguidade, temos citações em Irineu, Tertuliano, Orígenes, Eusébio, Jerônimo, Rufino e Agostinho. 
 
Galeno (129 - 217), famoso médico romano, narrou que, certa vez, enquanto andava pelas ruas de Roma, chegou a uma banca de um vendedor de livros e lá estavam dois homens dialogando sobre o título de um livro de nome Galeno, divergindo os contendentes sobre a autoria do livro. Um alegava que a obra era da pena do próprio Galeno, ao passo que o outro discordava incisivamente. A partir daí, Galeno produziu um pequeno livro intitulado Como reconhecer os livros de Galeno.
 
As Bibliotecas de Alexandria e de Pérgamo, as maiores do mundo antigo, tinham o costume de adquirir obras de vendedores e colecionadores, o que motivava alguns empreendedores a copiarem obras literárias, de preferência os clássicos na época. Tal condição, ao que parece, contribuiu para a adulteração de alguns livros.
 
Diógenes Laécio, talvez o principal doxógrafo da filosofia grega, cita que um tal Diotemo distribuiu 50 cartas supostamente atribuídas a Epicuro, contribuindo de forma significativa para uma má reputação do filósofo grego.
 
Epifânio, bispo da cidade de Salamina no século IV, confessou que havia lido um livro supostamente usado pelos fibionitas (não confundir com ebionitas), grupo cristão herege marcado pela imoralidade sexual. O livro, cujo título era As grandes questões de Maria, continha relatos bizarros sobre a relação entre Jesus e Maria Madalena, apontando que certa vez Jesus a levou até um alto monte e, na presença dela, tirou uma mulher de dentro de si (ou seja, dentro do próprio Jesus), no entorno das costelas, passando em seguida a manter relações com ela, ou seja, com a mulher que saíra de dentro dele. Após atingir o orgasmo, Jesus teria comido o próprio esperma, proferindo em seguida as seguintes palavras: "Isto temos de fazer para viver". Ao presenciar a dolorosa cena, Maria Madalena teria desmaiado. Segundo alguns historiadores, Epifânio tinha o hábito de inventar informações, de modo que esse relato é contado unicamente por ele, sem outra referência na história.
 
Não se sabe se Platão, afamado filósofo grego, foi fiel ao relato histórico que ele traz no diálogo Fédon, quando narra em detalhes e em longas páginas as últimas horas de Sócrates antes de morrer. Platão não se achava junto a Sócrates porque estava doente, colhendo da boca de Fédon os mínimos detalhes do relato. Quem já leu Fédon, sabe que é de pouca probabilidade que aquele relato, tal qual se mostra em sua sequência cronológica, tenha sido fiel a todo o diálogo travado naquela infausta ocasião.
 
Tertuliano, apologista cristão nascido no segundo século e falecido no século seguinte, afirma que as conhecidas histórias do apóstolo Paulo e sua (suposta) discípula Tecla foram forjadas por um líder de uma igreja da Ásia Menor, que teria sido pego em flagrante. Em represália, foi destituído de seu cargo, embora tenha justificado que todo o esforço intelectual se devia a seu amor ao apóstolo.
 
Um senador romano, do primeiro século, teria escrito uma carta onde narra a fisionomia de Jesus, declarando que Ele era alto e tinha o cabelo da cor de vinho. De forma parecida, uma epístola do segundo século descrevia o apóstolo Paulo como um homem baixo e de pernas ligeiramente tortas (tratamos das duas descrições em detalhes em outra postagem neste blog, de 03.04.2011). Obviamente não são aceitas nem por cristãos nem por acadêmicos.
 
Uma das mais conhecidas fraudes no meio cristão de que se tem notícia, aponta para o início e final do século IV. Poucos anos do Edito de Milão (313 d.C.), um imperador romano, tentando desprestigiar o movimento ascendente do cristianismo, forjou uma obra, intitulando-a de Atos de Pilatos, na qual tentava mostrar as origens do cristianismo. O conteúdo revelava grosseiros erros históricos, conforme demonstrado poucos anos depois. No final do século, desta vez pelas mãos de cristãos, vem à tona novo Atos de Pilatos, porém destituído de credibilidade tal qual o primeiro.

A importância desse título se devia em especial pelo fato do estudioso da filosofia grega e cristão, Justino Mártir, ter feito menção, por volta do ano 155 d.C., à existência de registros oficiais do Império Romano constando alguns feitos de Jesus Cristo, cujo assento se achava nos Atos de Pilatos, onde eram registrados os atos públicos de Pilatos. Na ocasião, Justino desafiou o então imperador Antonino Pio a consultar os referidos Atos, conforme se acha em sua obra Apologia,  a fim de que o imperador verificasse o próprio assentamento como prova histórica (e até divina, segundo Justino) da existência de Jesus. Sobre o primeiro Atos de Pilatos, que se tratava de um registro público do Império, nada se sabe nos dias hoje visto que não ficou preservado para a posteridade. Está documentalmente provado que os gestores provinciais romanos tinham expressa determinação do imperador para registrar seus feitos, conhecidos tradicionalmente como "Atos" seguido do nome do gestor. As fraudes, portanto, foram aquelas do quarto século e não a do início do primeiro século, a que Justino fez menção.