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Nossa primeira Constituição já nasceu com a marca do absolutismo: foi
outorgada pelo chefe do Executivo em 25.03.1824, depois de dissolver a
Constituinte de 1823.
De
acordo com Paulo Bonavides, “o pensamento constituinte deu o primeiro passo no
sentido de sua concretização com a deputação de São Paulo representando ao
Príncipe Regente D. Pedro” a necessidade de convocação de uma Assembleia
Constituinte, a fim de se formular a primeira Constituição brasileira, cujo ato
convocatório se deu em 12 de junho de 1822 – portanto ainda antes da
proclamação da independência.
No
dia 3 de maio de 1823, instalou-se a Assembleia Geral Constituinte e
Legislativa do Brasil, que tinha dupla finalidade: elaborar a nossa primeira Constituição
e legislar concomitantemente. Ou seja, enquanto votava a Carta Magna, votava
também as leis ordinárias, competência parlamentar atípica em nossa história
constitucional.
De
acordo com os anais da história, D. Pedro I compareceu à referida sessão com 3
horas e 30 minutos de atraso (chegou às 12h30min), gerando ociosidade na Casa
até aquele momento solene. Após as formalidades de praxe, fez um longo discurso,
através do qual merecem destaques (dentre outros temas), os seguintes pontos: (i)
afirmou ser vergonhoso para o Brasil o fato de ter passado mais de 300 anos
sendo chamado de Colônia; (ii) declarou enfaticamente que amava a justiça e a
liberdade; (iii) fez minucioso balanço de sua gestão, destacando que já havia
feito muitas obras públicas – inclusive calçadas nas ruas do Rio de Janeiro –, que
teria comprado muitos livros para o “engrandecimento da Biblioteca Pública”, bem
como declarou que os “empregados civis e militares” estavam com o pagamento em
dia; (iv) que iria fortalecer a defesa militar brasileira; (v) repetiu, algumas
vezes, a necessidade do Brasil ter três Poderes harmônicos e independentes;
(vi) não agradeceu a Deus, mas à “Providência” pela “Nação representada, e
representada por tão dignos deputados”.
Após
a fala do “Defensor Perpétuo do Brasil”, o presidente da Constituinte, D. José
Caetano da Silva Coutinho, usou da palavra e fez um discurso de alguns minutos,
deliberadamente finalizado com um dos momentos mais empolgantes de toda a
história constitucional do Brasil: “Viva o nosso imperador constitucional!” – e
os presentes responderam de forma uníssona: “viva!”. Após, D. Pedro I bradou:
“Viva a Assembleia Constituinte e Legislativa!” – E todos responderam: “viva!”.
Já passavam das 14 horas.
O que parecia um mar de rosas,
no entanto, acabou se tornando gradativamente um pesadelo: nas sessões
seguintes, alguns deputados passaram a debater sobre um pequeno trecho da fala
do imperador, o qual findou não sendo percebido por outros constituintes. Eis o
trecho: “Espero que a Constituição que façais mereça a minha imperial
aceitação”.
Alguns viram, neste trecho, a
mão de ferro do imperador: ou a Assembleia faria uma Constituição digna de sua
majestade ou ela não teria a “imperial aceitação”. Tratava-se, na verdade, da
repetição do que ele próprio já afirmara em 1º de dezembro de 1822 (no ato de
coroação): “Juro defender a Constituição que está para ser feita, se for digna
do Brasil e de mim”.
Por outro lado, a fala do
presidente da Constituinte (que veio logo em seguida à do imperador) também
continha um pequeno trecho que, para os atenciosos, seria um recado direto ao
chefe do Executivo: “A distinção dos Poderes políticos é a primeira base de
todo o edifício constitucional”. Ou seja, o título de “Imperador
Constitucional” somente seria digno se ele, o imperador, respeitasse a
separação entre os três Poderes constituídos.
A primeira das leis
promulgadas pela Assembleia determinou que os decretos da Constituinte não estariam
sujeitos à sanção do imperador. Sua majestade imperial recebeu essa decisão
como uma afronta aos seus direitos, mas, após muita relutância, acatou a
decisão do Parlamento.
A sessão de 6 de novembro de 1823
marca o início do fim dos acontecimentos que terminaram na dissolução da
Constituinte. Um dos deputados requereu fosse lida em Plenário a carta de um
cidadão brasileiro chamado David Pamplona Corte Real, vítima de grave espancamento
por dois militares portugueses que faziam parte do Governo brasileiro.
Pelo conteúdo da queixa,
consta que Pamplona fora açoitado pelos dois militares por acharem que ele se
tratava do “brasileiro resoluto”, nome fictício do autor de cartas anônimas, nas
quais constavam duras críticas ao governo imperial.
Após a leitura da carta em
Plenário, o recinto ferveu. Uns exigindo que o Legislativo tomasse duras
medidas em favor daquele cidadão brasileiro. Outros, tentavam suavizar a
situação. Decidiu-se pela emissão de um parecer da Comissão de Justiça sobre o
caso, quando esta opinou fosse o caso levado aos “meios ordinários e prescritos
em lei”, o que contribuiu ainda mais para avultar a agitação.
Antes mesmo de se dar uma
resposta satisfatória ao caso “Brasileiro Resoluto”, na sessão do dia 10 de
novembro (com muitos populares no recinto), o Legislativo se achou em novas
querelas polêmicas. Tratava-se, desta vez, da votação de um projeto sobre a
liberdade de imprensa, cuja matéria era de grande interesse do Executivo, “ao
redor da qual girava também o incidente da agressão militar ao ‘brasileiro
resoluto’”, no dizer de Paulo Bonavides. Nesta sessão, a Assembleia aprovou
emenda ao parecer autorizando o Executivo a expulsar do território nacional os
dois militares portugueses envolvidos no incidente acima mencionado.
Na sessão do dia seguinte
(11.11.1823), novo dissabor: o primeiro orador da tribuna, Antônio Carlos
Andrada Machado, apresentou proposta aos seus pares no sentido de que aquela
Casa “se declare em sessão permanente”, bem como enviasse uma comissão de
deputados à presença do imperador, a fim de que ele justificasse um novo
incidente, desta vez ocorrido na noite do dia 10 para o dia 11: tropas oficiais
teriam passado a noite em agitação pelas ruas do Rio de Janeiro, gerando inquietação
aos cidadãos pacíficos. O pedido foi acatado.
À uma hora da manhã veio a bombástica
resposta do Executivo, na qual acusou os periódicos Sentinela da Praia Grande e Tamoio,
bem como os três irmãos Andradas pela “influência naquele e redação neste”, em
cujos instrumentos havia, no dizer do imperador, disseminação de “doutrinas
incendiárias”.
Insatisfeito com a resposta
governamental, às quatro horas da manhã o Legislativo, por meio de uma Comissão
Especial destinada para tal fim, deliberou que aquela Casa não acataria a
proposta imperial, mas reconhecia o excesso dos periódicos e de alguns outros
no tocante à liberdade de imprensa, razão por que a mesma Comissão propôs
fossem suspensas as votações da Constituição até que fosse concluída a lei que
trataria sobre a referida liberdade de imprensa.
O parecer não teve a recepção
esperada. Depois de acirradas discussões, deliberou a Casa sobre a convocação
do ministro do Império no sentido de que o mesmo comparecesse à Assembleia, às
10 horas do mesmo dia, e circunstanciasse a resposta governamental ofertada, na
qual acusava os dois periódicos e os três irmãos Andradas.
Às 11 horas o ministro compareceu.
Iniciou sua fala ainda sentado, mas foi advertido pelo presidente da Casa a
falar em pé. Principiou seu discurso apontando os últimos acontecimentos em
Portugal, afirmando que D. Miguel, irmão de D. Pedro, havia convocado as tropas
militares com a finalidade de dissolver a Constituinte daquele país. O recado
estava dado.
Prosseguiu o ministro
explicitando o desejo do Executivo: que fosse coibida a liberdade de imprensa
no Brasil e que os três irmãos Andradas fossem expulsos da Assembleia.
Justificou o Governo que oficiais militares e a pessoa de D. Pedro estariam sendo
duramente insultados nos dois periódicos, destacando que, no Tamoio (onde os Andradas eram acusados
de redatores), chegou-se a ameaçar a vida física e política do imperador.
O ministro imperial finalizou
o discurso relembrando que o Brasil se encontrava em situação parecida com a de
Portugal, em cuja oportunidade pediu que a Assembleia refletisse sobre as
propostas do Governo. Um aparte do deputado Montezuma requereu do ministro mais
esclarecimentos sobre a comparação trazida por este, querendo saber nas
entrelinhas se a Assembleia estaria correndo risco naquele momento. Eis a
resposta:
Eu não sei adivinhar futuros. Vejo a Assembleia amotinada levantar
extemporaneamente a sessão: os militares se queixaram a Sua Majestade; as
tropas marcharam para São Cristóvão; e a Assembleia todo o dia e noite em sessão
permanente; ora, cousas semelhantes a esta eu vi em Portugal; contudo, não
posso afirmar qual será o final resultado.
O presidente da Casa se deu por satisfeito. Do
lado de fora se achava D. Pedro, cercando o prédio com todo o seu aparato
militar. A dissolução era uma decisão irreversível: no mesmo dia (12.11.1823) o
imperador baixou o decreto de dissolução da Constituinte, alegando que,
“havendo esta Assembleia perjurado ao tão solene juramento que prestou à Nação
de defender a Integridade do Império, sua Independência e a Minha Dinastia: Hei
por bem, como Imperador e Defensor Perpétuo do Brasil, Dissolver a mesma
Assembleia e convocar já uma outra...”.
A
convocação para uma nova Assembleia Constituinte não veio, e em 25 de março de
1824 o imperador empurrou, goela abaixo, sua Constituição.
José
de Alencar, mais afamado na literatura do que como parlamentar, fez veemente
defesa do ato absolutista do imperador, chegando a afirmar que a Constituição
outorgada era mais liberal do que o projeto de 1823 (inexequível, na sua
visão), e que a dissolução foi, naquele momento histórico, algo bom para o
país, vítima iminente de graves consequências, caso o imperador não tivesse
dado o golpe ditatorial.
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