terça-feira, 15 de julho de 2014

OS BASTIDORES DA PRISÃO E DA CONDENAÇÃO DOS INCONFIDENTES MINEIROS: A SAGA DE UM ADVOGADO PARA INOCENTAR SEUS CLIENTES

A Jornada dos Mártires, de Antônio Parreiras, retrata a passagem dos inconfidentes.
Imagens extraídas da wikipedia
O plano final dos inconfidentes mineiros eram a Proclamação da República e a Independência, mas foram traídos por Joaquim Silvério dos Reis.
O magistrado Alvarenga Peixoto, acostumado às negociatas graças ao cargo que ocupava, só não delatou o plano antes de Silvério (a quem devia um dinheiro emprestado) porque sua esposa, Bárbara Heliodora, intercedeu junto a ele com muitas súplicas. Após o desfecho da condenação dos inconfidentes, o magistrado imputou à sua esposa a desgraça por ter impedido a revelação.
Há quem afirme, também, que o próprio Tiradentes, em uma de suas bebedeiras, tenha feito alusão ao plano, esquecendo-se em seguida da confissão. Será que a senha “É tal dia o batizado” fora revelada ainda numa mesa de bar?
José Joaquim da Silva Xavier foi preso no dia 10 de maio de 1789. Logo depois, em 2 de julho do mesmo ano, seu amigo Cláudio Manoel Costa (em cuja casa se reuniam os inconfidentes, inclusive Alvarenga Peixoto) foi encontrado morto na cela. Causa oficial da morte: suicídio. Mais tarde, viria a verdade dos fatos: ele fora assassinado, conforme afirmou o médico que o examinou. De fato: o sargento-mor Parada e Sousa teria sido o autor do crime, e, um mês após a morte, foram realizadas, em louvor a sua alma, mais de 30 missas na Igreja Católica – que não realizava tal liturgia em caso de suicídio.
Tiradentes chegou a ser interrogado 11 vezes. Negou nas três primeiras vezes, mas foi levado a confessar sua culpa depois das degradantes técnicas inquisitoriais.
Após três anos na prisão, viria a condenação formal. No dia 31 de outubro de 1791 o Estado nomeou o advogado José de Oliveira Fagundes para fazer a defesa de todos os réus, inclusive a dos falecidos. O causídico tinha 39 anos de idade e 13 de profissão quando de sua nomeação.
Em 20 dias o defensor dativo havia feito as alegações finais, extrapolando os cinco dias que lhe foram concedidos. Alegou que o grande número de réus (29, ao todo) não lhe permitia cumprir taxativamente o prazo legal, pois tinha que discorrer sobre cada um deles, individualmente, os quais estavam sendo acusados pelos crimes prescritos no Livro V, Título VI, parágrafos 5º e 6º das Ordenações.
Eis alguns dos argumentos/pedidos apontados pelo advogado:
Quanto ao réu Cláudio Manuel da Costa (falecido): pediu que lhe fosse relaxada a ordem de sequestro sobre seus bens. No tocante a Tomás Antônio Gonzaga, alegou que o mesmo não teve participação no caso, segundo estaria demonstrado nos autos, e pediu sua total absolvição. Quanto a José de Alvarenga Peixoto, alegou que “nem por carta nem por conversa e persuasão” o mesmo praticou o ato.
Os autos foram conclusos ao julgador e, na madrugada de 17 de abril do ano seguinte (1792) os réus foram acordados em seus confinamentos, de onde partiram para a cadeia pública, para enfim tomarem conhecimento da sentença.
Os desembargadores levaram 18 horas para redigir a sentença, tendo-a terminado às duas horas da manhã do dia 19.
De acordo com a legislação vigente, nenhum condenado à morte poderia ouvir a sentença sem a assistência de um religioso, que tinha a missão precípua de convencer os réus a se arrependerem de seus pecados, bem como encomendar a alma dos mesmos aos céus – além do conforme espiritual naquele momento moribundo. Foram chamados às pressas 11 religiosos do Convento de Santo Antônio.
Um a um, os condenados foram conduzidos à sala do oratório da cadeia. Quase não se reconheceram: barbados, magros, desfigurados e deslumbrados pela luz. Ouvia-se o tinir das pesadas correntes que traziam nos pés e mãos (e alguns no pescoço, como era o caso de Tiradentes).
O barulho que se fazia em decorrência dos cumprimentos e de algumas lamúrias foi abruptamente interrompido com a entrada do desembargador Luís Alves da Rocha, do oficial de justiça e dos 11 religiosos. Num canto de parede, Tiradentes parecia o mais triste.
Inicia-se a leitura da sentença (que durou duas horas) e, um a um, os réus ficaram sabendo as exatas acusações que lhes pesavam. O magistrado começou afirmando que o crime cometido por eles se tratava dos mais horrendos. Vamos a um trecho da sentença em relação a Tiradentes:
“Condenam ao réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha Tiradentes (...) a que, com baraço e pregação, seja conduzido pelas vias públicas ao lugar da forca e que nela morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Vila Rica, aonde, em o lugar mais público dela será pregado em poste alto, até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos e pregados em partes, pelo caminho de Minas, no Sítio de Varginha e das Cebolas, aonde o réu teve as suas infames práticas e os mais nos sítios de maiores povoações até que o tempo os consuma; declaram o réu infame e os seus filhos e netos, tendo-os, e os seus bens aplicam para o Fisco e Câmara Real e a casa em que vivia em Vila Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique, e, não sendo própria, será avaliada e paga ao seu dono pelos bens confiscados e no mesmo chão se levantará um padrão, pelo qual se conserve em memória a infâmia desse abominável réu”.
Neste exato momento da leitura Tiradentes parecia alheio. Concluída a leitura, os religiosos se aproximaram dos condenados e ouviram lamúrias e queixas.
Logo em seguida, José de Oliveira Fagundes, advogado dos réus, pediu vista dos autos. Concederam-lhe o curto prazo de 24 horas para eventual recurso, cumprido diligentemente pelo causídico.
Os autos voltaram para o relator. Enquanto isso, foi determinado aos serventuários que preparassem o ambiente para as execuções da pena.
No dia 20 de abril, veio a decisão: recurso totalmente improvido. Mantinha-se a sentença na íntegra, e determinou seu cumprimento, mas um trecho chamaria a atenção: que, “a seu tempo, deferirá a declaração dos réus a respeito dos quais se há de suspender a execução”.
Imediatamente o advogado entrou com novo recurso. Desta vez, o incansável José de Oliveira Fagundes apelou para a Bíblia. Assentiu que Deus, ao castigar Caim, não lhe quis tirar a vida pelo crime contra a vida de seu irmão Abel, tendo optado por não matar a Caim, mas por fazê-lo perecer de outra forma. O advogado retirava do fundo do poço uma tentativa de comover os magistrados, consignando que os réus “se acham penetrados de dor que os não permitirá respirar por muito tempo, por verem a Soberana ofendida e em termos de purgarem em um sanguinolento e fúnebre patíbulo, as suas maledicências”.
Novamente o recurso não foi provido, mas a Alçada se mostrou confusa ante os fortes argumentos da defesa.
Restando meia hora para a execução, nova apelação: desta feita para a Rainha:
“Dizem José Joaquim da Silva Xavier e outros RR., presos e condenados à pena última que, vindos com Embargos à mesma condenação que lhes foram desprezados, e porque querem por via de restituição de presos e miseráveis, deduzirem segundos Embargos, concedendo-se-lhes para esse fim vistas. Pede a Vossa Majestade seja servida conceder aos suplicantes a graça que imploram”.
O despacho judicial foi o seguinte: “Dê-se-lhe com meia hora. Rio, 20 de abril de 1792.”.
Na meia hora que lhe foi concedida, o advogado de defesa escreveu três laudas. Vejamos parte deste recurso:
“Provará não havendo ainda de todo fechado aos RR, a porta desse Augusto Tribunal, onde preside com a Justiça e a Piedade, a consideração dos delinquentes, tomam os RR, prostrados com o peso dos erros que os oprimem, rompendo os soluços com que os sufoca o temor da morte a clamar pela piedade de sua Augusta Soberana (...). Provará que nestes termos e nos de direito, os presentes Embargos se hão de receber e julgar provados para comutar-se a pena imposta aos RR., em degredo perpétuo, onde justifiquem a sua emenda, que protestam neste tribunal, recebendo-se para esse fim e julgando-se provados os presentes Embargos...”.
Já não havia tempo para uma defesa técnica, restando ao advogado tão somente apelar para o emocional.
Ao meio-dia de 20 de abril o escrivão entrou na cadeia para ler a decisão do recurso: novamente rejeitado em sua íntegra.
Neste momento, os presos se achavam ao pé das paredes, ora gemendo, ora se confessando com os religiosos. O barulho se confundia com o tinir das correntes.
Quando tudo parecia perdido, um desembargador se dirige pessoalmente ao presídio e afirma que havia novo acórdão: somente Tiradentes seria executado à pena de morte, enquanto os demais seriam condenados ao degredo perpétuo. E todos gritavam: “Viva a Rainha!”. Todos menos um: Tiradentes, que se achava em silêncio num canto de parede, até que encontrou forças para cumprimentar um a um.
Depois, Tiradentes se virou para o padre e disse: “Dez vidas daria se as tivesse, para salvar as deles. Eu sou a causa da perdição desses homens, mas, felizmente, não levarei nenhum comigo”. Antes da leitura da sentença, já teria dito: “Se Deus me ouvira, eu só morreria e não eles”.
 Agendou-se o dia seguinte para a execução: 21 de abril, exatamente um ano após a última execução. Não sendo isto, teria sido no dia 20 de abril.
Nenhum serventuário da Justiça quis preparar Joaquim José da Silva Xavier para a execução. A solução encontrada foi chamar um célebre criminoso da época, que também se achava preso. Tratava-se do presidiário Capitania.
Acompanhado de dois meirinhos, trazia nos braços uma corda enorme e uma camisola branca, conhecida como “alva dos condenados”. Consta que, por um instante, hesitou. Percebendo a tristeza no gesto de seu algoz, Tiradentes proferiu as seguintes palavras: “Ó meu amigo, deixe-me beijar-lhe as mãos e os pés”.
Assim procedeu, vestindo em seguida a alva. Em seguida, exclamou aos presentes: “Meu salvador morreu assim, nu, por meus pecados”.  Teria sido, em sua última hora, uma confissão pessoal a Cristo como Senhor e Salvador de sua vida, como assinala a Bíblia?
Eram oito para as nove horas da manhã quando o condenado alcançou a rua. O povo rezava e citava alguns salmos. No meio das vozes, um meirinho lia, em bom som (cumprindo a sentença), “o horroroso crime de rebelião e alta traição”.
Havia três anos que Tiradentes não andava, o que comprometeu sobremaneira seu percurso, o que o fez parar por duas vezes, em cuja oportunidade aproveitou para olhar para o céu e beijar a imagem de Cristo. Era seguidamente confortado pelo frei Penaforte.
Chegado ao local da execução, ordenou-se que fosse rezado um credo. Ouvia-se nitidamente a voz do alferes orando. Em seguida, três vivas à Rainha. Após, a consumação.
Quatro dias depois da execução, o mesmo advogado fez nova vista dos autos, no prazo de 24 horas, para tratar finalmente dos condenados ao degredo.
Exatamente no dia 21 de abril do ano seguinte (1793), o advogado José de Oliveira Fagundes receberia, do Estado, a importância de 200$000 réis pela defesa dos inconfidentes.
.