quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O MASSACRE NA FURNA DOS CABOCLOS: O RELATO DE UMA JOVEM INDÍGENA QUE SOBREVIVEU COMENDO INSETOS E FOI OBRIGADA A VIVER AMARRADA EM UM CANTO DA CASA, E APÓS ANOS DE ESCRAVIDÃO, SE CASOU COM SEU ALGOZ


O que você vai ler agora não está nos livros de história do Brasil. Não está nas salas de aula, e não há quaisquer perspectivas de que o fato ganhe notoriedade ou seja trasladado para os livros didáticos em questão. A única fonte de que dispomos vem de “Na mata do sabiá, contribuições sobre a presença indígena no Ceará”, uma obra que traz vários artigos sobre a atuação dos índios em nosso estado.

Abordaremos o relato acerca de um massacre indígena ocorrido no início do século 19, de cuja chacina restou provavelmente uma única sobrevivente, que teria sido caçada e posteriormente obrigada a viver confinada em um canto de parede. Transcreveremos, ainda, pequenos trechos do depoimento de um descendente dessa jovem, que nos conta em detalhes como se deu o referido massacre e seu desfecho.

Crateús, Ceará, início do século 19. Embora o Ceará já tivesse sido há muito tempo explorado pelo homem branco, os índios ainda encontravam aqui algum espaço para praticar seus rituais e viver da coleta de frutos, raízes e da caça de animais (cotias, mocós, jacus, tatus, veados, pássaros, etc.).

Em todo o Nordeste havia terra de sobra, sem dono, pronta para ser explorada. Vários fazendeiros se diziam proprietários de grandes extensões territoriais, onde criavam gado, ovelha, cujo bem não pretendia disputar com os indígenas, os quais já residiam anteriormente nestas terras.

Os índios não tinham a exata noção de propriedade. Não lhes havia claro discernimento acerca do que o homem branco chamava de “seu”, de sorte que o gado que pastava passou a ser visto pelos nativos como uma excelente opção em tempos de estiagens. O confronto era inevitável: de um lado os fazendeiros prontos para defender a ferro e fogo seus víveres e do outro o índio, acostumado à caça de todo animal vertebral que se movia ao seu redor.

Na cidade de Crateús (CE), há um distrito de nome Monte Nebo (hoje Montenebo), palco da tragédia em questão. Segundo a tradição oral, lá viviam vários índios, os quais tinham o hábito de dormir em uma furna de pedra, provavelmente para se protegerem das onças e do frio. Os mesmos teriam atacado, por diversas vezes, o gado e as ovelhas de um fazendeiro de nome José de Barros.

Sentindo falta dos animais, o proprietário mandou um de seus vaqueiros investigar o motivo do sumiço, cujos culpados teriam sido prontamente apontados pelo espião. Revoltado, o fazendeiro montou um plano traiçoeiro. Ordenou que um de seus criados fizesse amizade com os índios, a fim de que fosse estudado o passo a passo de seus roteiros, principalmente o local onde eles dormiam. Dito e feito. Restava efetivar o plano.

Acostumado ao dia a dia dos índios e já familiarizado com os mesmos, o espião conseguiu ganhar a confiança deles, a ponto de dormir na furna acima mencionada. O papel do espião era basicamente um: cortar as linhas dos arcos, fazendo com que os indígenas ficassem desarmados. Assim foi feito e o plano só não foi completo porque uma única jovem, de 13 ou 14 anos, teria escapado na noite do massacre.

A jovem arredia passou a viver na caatinga, sozinha, lutando em prol de sua sobrevivência, acompanhada da dor que a seguia pela perda de seus familiares. Diz a tradição que o vaqueiro de nome Pedro, a serviço do fazendeiro José de Barros, teria encontrado a indiazinha em pleno mato, a quem o mesmo empreendeu uma dura caçada, disposto a capturá-la ou matá-la, de acordo com a conveniência.

Os dois teriam brigado corpo a corpo, até que ela “pegou aqui nas goela dele … torou o couro... torou e comeu...” e conseguiu fugir. Insatisfeito e muito revoltado com a primeira derrota, o vaqueiro partiu em busca da índia, a quem conseguiu alcançá-la e por fim capturá-la. Em vez de matá-la, ele resolveu criá-la em casa, onde passou a viver amarrada em um canto interno da sala. Arredia, ela se negava a comer e pouco bebia água. Passou a se alimentar de baratas e outros insetos que arrodeavam seu leito. Daí o apelido dado ao senhor Mariano, “Seu Barata”.

Com o passar dos anos, o ódio teria se convertido em afeto. Os dois se casaram, e da união uma descendência, que teria ultrapassado as décadas vindouras, o século 19, e atingiu a geração de seu Mariano, nascido em 1915, casado – segundo ele, com uma descendente dos holandeses que habitaram o Maranhão.

Na noite do massacre foram mortos muitos índios. Não se sabe precisar a quantidade, embora na década de 50 tenha sido encontrado elevado número de ossos humanos. Seu Mariano, descendente da única sobrevivente, afirma que em 1950, a convite de um padre, se dirigiu à gruta - sob pretexto de que lá haveria uma celebração religiosa - , onde foi assediado pelo sacerdote a cavar o local, com o fim de encontrar joias ou algo de valioso deixado pelos índios. No dizer de seu Mariano “... e nós cavemo...nós fizemo uma ruma de osso que dava mais de que o reboque dum trator hoje...”.

Seu Mariano narrou ainda, que na seca de 1952, sustentou várias pessoas somente da caça. Segundo ele, só no referido ano, matou 60 veados, dos quais tirava um pequeno pedaço para almoçar e jantar, e o restante distribuía para os seus. O fato aqui retratado é batizado de “O massacre na furna dos caboclos”.

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